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Mostrando postagens de maio, 2025

Frasco Sem Nom

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(Ou: o peso de uma culpa com carimbo alheio) O que se perdeu naquela noite não foi apenas um paciente. Perdeu-se também a ilusão de que, no fim do plantão, quem segue ordens está seguro. Era quarta-feira, mas parecia segunda. O corredor do andar 3, setor de clínica médica, já borbulhava com queixas, roncos de bombinhas, e o som habitual dos alarmes que apitam mais por abandono do que por urgência. Eliane chegou como sempre: 18h, jaleco gasto, cabelo preso e a alma treinada para não pedir descanso. Técnica de enfermagem com 12 anos de hospital, desses em que se trabalha por três e se ganha por um. Silenciosa, discreta, competente. O tipo de funcionária que não ganha elogio nem que segure a morte pela mão. Mas cumpre. E cumpre tudo. Naquele plantão, assumiria 12 leitos. Estava substituindo uma colega que havia faltado, a quarta do mês. Pegou o caderno de passagens, anotou as medicações, os acessos, os sinais. Uma enfermeira já reclamava do atraso da farmácia. Outra dizia que não havia te...

O Diagnóstico da Culpa

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(Ou: como aprender medicina pela cartilha da solidão) Na primeira semana do primeiro mês da primeira especialização, Pedro jurou que faria tudo certo. Era residente de clínica médica, 26 anos, recém-formado, idealista com olheiras e estetoscópio novo. Tinha na mochila uma caneta azul, o Manual de Terapêutica da Sociedade Brasileira de Clínica e uma esperança ainda não processada. Tinha, também, medo. Mas chamava o medo de "responsabilidade". No hospital escola, aprendeu nos primeiros dias o que a faculdade omitia: que a linha entre a segurança do paciente e o abandono institucional é tão fina quanto a caligrafia de um preceptor. Naquela sexta-feira abafada, Pedro estava de plantão no pronto-socorro. O fluxo era grande, o preceptor ocupado, a supervisão feita a gritos no corredor. Um senhor de 71 anos, Sr. Octávio, chegou com dor epigástrica. Pressão normal. ECG com alterações discretas. Pedro suspeitou de algo mais grave. Pediu exames. Solicitou parecer cardiológico. Chamou o...

O DNA que Não Explica Tudo

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(Ou: quando a ciência hesita, mas a sociedade quer certezas) Na sala fria do Instituto Médico Legal, com cheiro de álcool e silêncios coagidos, o Dr. Olavo assinava mais um dia. Não era um novato. Vinte e dois anos de carreira, centenas de corpos, dezenas de tribunais, e uma reputação forjada na cautela. Nunca dera um parecer com mais certeza do que a ciência permitia. E, por isso mesmo, era respeitado e temido. Naquela terça cinzenta, chamaram-no para uma perícia especial. Criança de cinco anos. Suspeita de abuso. No prontuário, lacunas. Na voz do delegado, urgência. Na mãe, desespero. O menino, magro, assustado, com olhos que evitavam o teto. Disse pouco. Chorou em três momentos. O exame físico apontou equimoses em regiões mistas. Havia possibilidade de traumas. Mas não havia certeza. Dr. Olavo descreveu com precaução: "Lesões compatíveis com hipótese de abuso, sem características conclusivas de ato violento ou dolo evidente. Sugere-se acompanhamento psicossocial e investigação ...

O Silêncio do Doutor Nunes

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  (ou: como salvar uma vida e enterrar a própria com a mesma assinatura) Não há crime mais imperdoável do que o de cumprir o dever na hora errada. E se esse crime for cometido com caneta preta, carimbo oficial e laudo assinado, então é melhor preparar o crânio para o cadafalso da opinião pública. Era uma segunda-feira comum no Hospital da Célula Justa. Nome pomposo, paredes sujas, corredores de espera onde os gritos se misturavam à burocracia. O Doutor Nunes, psiquiatra de plantão, homem de modos brandos e olhos de quem já viu demais, tomava o segundo café do dia quando lhe entregaram o caso. — Paciente agitado, agressivo com a mãe, histórico de surto. Quer bater em todo mundo, inclusive em si mesmo. Foi com essas palavras que lhe entregaram o prontuário. E foi com esses gestos que ele, em silêncio, colocou os óculos no rosto e dirigiu-se ao leito 17. Lá estava o rapaz, com a féria de quem já havia destruído duas cadeiras e jurado arrancar os próprios olhos — não por vaidade, mas p...

O Último Nome no Prontuário

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(Ou: o dia em que a burocracia precisou de um culpado e encontrou um inocente) Era um sábado com cheiro de sexta que se recusava a terminar. O sol ainda ardia sobre o concreto quando o Dr. Rafael chegou ao hospital pela porta dos fundos, convocado de última hora para cobrir o plantão do colega que, como se saberia depois, simplesmente não atendeu o telefone e deixou o turno como herança. Rafael era novo. Novo no jaleco, no sistema, na esperança. Vinha de semanas puxadas, mas não recusava plantão. Tinha, ainda, a ilusão de que ser útil era o primeiro degrau para ser reconhecido. Não sabia que, no tabuleiro dos hospitais, peões não são promovidos. São descartáveis. Chegou às 18h04. Cumprimentou os colegas com aquele sorriso de quem não quer atrapalhar o andamento do plantão. Ninguém respondeu. Apenas assentiram com os olhos. A sala de emergência já fervia. Macas encostadas, pacientes nos corredores, acompanhantes desesperados. Em meio ao caos, um caso passou desapercebido por todos — men...