Frasco Sem Nom
(Ou: o peso de uma culpa com carimbo alheio)
O que se perdeu naquela noite não foi apenas um paciente.
Perdeu-se também a ilusão de que, no fim do plantão, quem segue ordens está seguro.
Era quarta-feira, mas parecia segunda. O corredor do andar 3, setor de clínica médica, já borbulhava com queixas, roncos de bombinhas, e o som habitual dos alarmes que apitam mais por abandono do que por urgência. Eliane chegou como sempre: 18h, jaleco gasto, cabelo preso e a alma treinada para não pedir descanso.
Técnica de enfermagem com 12 anos de hospital, desses em que se trabalha por três e se ganha por um. Silenciosa, discreta, competente. O tipo de funcionária que não ganha elogio nem que segure a morte pela mão. Mas cumpre. E cumpre tudo.
Naquele plantão, assumiria 12 leitos. Estava substituindo uma colega que havia faltado, a quarta do mês. Pegou o caderno de passagens, anotou as medicações, os acessos, os sinais. Uma enfermeira já reclamava do atraso da farmácia. Outra dizia que não havia tempo nem para conferir a temperatura dos pacientes.
— Carrinho da 304 tá pronto? — gritou a enfermeira.
— Já sim, — respondeu Eliane.
O paciente da 304 era Sr. Eustáquio, 71 anos, hipertenso, insuficiente cardíaco, internação por desconforto respiratório. Na prescrição, furosemida IV, dipirona e um antibótico. O frasco já estava no carrinho, rótulo claro: ceftriaxona 1g/10ml. Medicação da farmácia, diluída, com carimbo e tudo. Eliane pegou, conferiu com a folha, administrou com a atenção de sempre.
Meia hora depois, o mundo desabou.
O paciente teve queda de pressão abrupta. Dispneia. Líquido nos pulmões. A enfermeira correu. O médico plantonista veio. Tentaram reverter. Intubação. UTI. Transferência urgente. As mãos de Eliane tremiam, mas o olhar seguia fixo no leito.
— O que foi dado pra ele? — perguntou o médico.
— O do carrinho. A ceftriaxona da prescrição.
— Traz o frasco.
Trouxeram. O rótulo estava correto. O conteúdo, não.
Análise rápida: não era ceftriaxona. Era vancomicina. Alta concentração. Alta toxicidade. Farmácia havia rotulado errado. O plantão anterior não revisou. A enfermeira não conferiu. Eliane aplicou.
E foi ela quem assinou.
Começou o protocolo de "Evento Adverso Grave".
A coordenadora subiu. Chamou Eliane numa sala com ar condicionado forte e empatia fraca.
— Precisamos entender o que houve. Você seguiu o protocolo de conferência?
Ela tentou explicar. Que o frasco veio pronto. Que o tempo era curto. Que era rotina confiar no que vinha com rótulo oficial. Que ninguém ali tinha tempo para refazer o trabalho da farmácia.
Mas não havia protocolo para a pressa. Só para a culpa.
Dias depois, a família do paciente foi avisada do "erro assistencial". Um termo bonito que não protege do olhar atravessado nem da manchete que viria depois: "Paciente vai à UTI após erro de medicação. Funcionária é afastada."
Eliane foi afastada preventivamente. Não houve escuta. Não houve investigação completa. Havia um nome na ficha. Havia uma assinatura. E havia uma história que precisava ser encerrada para que a instituição se dissesse em paz.
Nos dias seguintes, amigos silenciaram. A coordenadora não ligou. A enfermeira-chefe trocou de assunto. O sindicato mandou um e-mail. O prontuário, esse seguiu firme, com a assinatura de Eliane entre as linhas.
Ela não chorou. Não gritou. Não processou.
Comprou um caderno. E escreveu.
Escreveu tudo. Hora, nome, frasco, gesto. Escreveu como quem costura a própria alma. Escreveu como quem quer deixar prova de que esteve ali, sim, mas não como culpada — como mais uma entre os invisíveis.
Hoje, Eliane trabalha num lar de repouso. Menos pressão, menos gente, mais silêncio. Aplica as medicações como sempre. Confere tudo. Duas vezes. Três. Não confia em rótulo. Não confia em rotina. Não confia em proteção institucional.
Confia apenas na própria consciência. E naquilo que escreveu.
Porque, no fim, o que a salvou não foi o protocolo. Foi a lembrança viva de que, naquele plantão em que tudo falhou, ela foi a única que ficou até o fim.
FIM
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