O Diagnóstico da Culpa



(Ou: como aprender medicina pela cartilha da solidão)

Na primeira semana do primeiro mês da primeira especialização, Pedro jurou que faria tudo certo.

Era residente de clínica médica, 26 anos, recém-formado, idealista com olheiras e estetoscópio novo. Tinha na mochila uma caneta azul, o Manual de Terapêutica da Sociedade Brasileira de Clínica e uma esperança ainda não processada. Tinha, também, medo. Mas chamava o medo de "responsabilidade".

No hospital escola, aprendeu nos primeiros dias o que a faculdade omitia: que a linha entre a segurança do paciente e o abandono institucional é tão fina quanto a caligrafia de um preceptor.

Naquela sexta-feira abafada, Pedro estava de plantão no pronto-socorro. O fluxo era grande, o preceptor ocupado, a supervisão feita a gritos no corredor. Um senhor de 71 anos, Sr. Octávio, chegou com dor epigástrica. Pressão normal. ECG com alterações discretas. Pedro suspeitou de algo mais grave.

Pediu exames. Solicitou parecer cardiológico. Chamou o preceptor. Esperou.

E esperou.

Não houve retorno.

O plantão apertava. Os corredores enchiam. O tempo passava.

Sr. Octávio melhorou com omeprazol e analgésico. Estava sentado, sorridente, agradecido. Pedro anotou tudo no prontuário. Laudo de sangue, ECG, a conduta adotada. Fez o que estava ao seu alcance. Esperou mais uma hora. Sem resposta da cardiologia. Sem contrassinar do preceptor.

Decidiu liberar.

Deu orientações. Marcou retorno. Recomendou reavaliação.

Doze horas depois, Sr. Octávio morreu em casa. Infarto agudo do miocárdio. A filha o encontrou no sofá, com a ficha do hospital no colo.

Na segunda-feira, o prontuário virou peça de inquérito.

Chamaram Pedro.

Ele achou que seria ouvido. Foi interrogado.

O preceptor não apareceu. A chefia disse que “todos os profissionais são responsáveis por suas condutas”. O parecer cardiológico nunca chegou. E a assinatura que constava na folha de evolução era a dele. Apenas a dele.

— Você liberou o paciente com dor torácica?

— Não era dor torácica clássica. Era epigástrica, irradiando para as costas. Sem alterações dinâmicas no ECG.

— E o parecer cardiológico?

— Não veio. Solicitei. Foi registrado.

— E o preceptor?

— Chamei. Três vezes.

— Mas quem assinou?

Silêncio.

Pedro segurava o prontuário como quem carrega o próprio julgamento. A caligrafia dele era nítida. Organizada. Clara. O resto era lacuna. Nada do preceptor. Nenhuma rubrica da enfermagem. Nenhum carimbo da cardiologia.

— Faltou maturidade para reconhecer a gravidade, doutor.

— Faltou supervisão.

— Faltou prudência.

— Faltou apoio.

Nada disso entrou na ata.

Pedro saiu do hospital com o jaleco dobrado nos braços. Passou na lanchonete em frente. Pediu um café. A mão tremia.

Meses depois, foi absolvido. A sindicância arquivou o caso por insuficiência de provas. Mas o dano já estava feito.

Nunca mais atendeu um paciente sem chamar duas vezes, anotar três, e carimbar quatro. Aprendeu, antes do tempo, que a medicina ensina muito sobre diagnóstico. Mas nada sobre abandono.

Hoje, Pedro segue na medicina.

Mais cínico, menos esperançoso. Viu colegas errando mais e sofrendo menos. Viu preceptores sumirem de cena. Viu prontuários desaparecerem. Mas nunca mais viu um nome tão claro numa ficha quanto o dele naquele dia.

E todo dia, quando pergunta ao paciente se sente dor, pergunta também a si mesmo:

— E se ninguém me ouvir de novo?

FIM.


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