O Último Nome no Prontuário
(Ou: o dia em que a burocracia precisou de um culpado e encontrou um inocente)
Era um sábado com cheiro de sexta que se recusava a terminar. O sol ainda ardia sobre o concreto quando o Dr. Rafael chegou ao hospital pela porta dos fundos, convocado de última hora para cobrir o plantão do colega que, como se saberia depois, simplesmente não atendeu o telefone e deixou o turno como herança.
Rafael era novo. Novo no jaleco, no sistema, na esperança. Vinha de semanas puxadas, mas não recusava plantão. Tinha, ainda, a ilusão de que ser útil era o primeiro degrau para ser reconhecido. Não sabia que, no tabuleiro dos hospitais, peões não são promovidos. São descartáveis.
Chegou às 18h04. Cumprimentou os colegas com aquele sorriso de quem não quer atrapalhar o andamento do plantão. Ninguém respondeu. Apenas assentiram com os olhos. A sala de emergência já fervia. Macas encostadas, pacientes nos corredores, acompanhantes desesperados.
Em meio ao caos, um caso passou desapercebido por todos — menos pela família. Um senhor de sessenta e poucos anos, trazido por vizinhos após desmaiar no banheiro. A triagem, feita por uma enfermeira exausta, o classificou como código amarelo. Não havia vaga na sala vermelha. O transporte demorou. O ECG atrasou. O monitor estava quebrado. Não havia acesso venoso. E, no meio disso, Rafael entrou.
— Doutor, cama 14 está mal. Não está respondendo direito.
Foi quando o viu. O paciente suava, olhos vidrados, respiração curta. Rafael tentou o que podia. Mandou chamar o plantonista da anestesia. Nada. O desfibrilador levou três minutos para chegar. A parada cardíaca veio antes.
Ele reanimou. Uma, duas, três vezes. Mas o coração desistiu.
Rafael declarou o óbito às 20h12.
Fez o que se faz: preencheu o prontuário, descreveu a evolução, notificou a direção, consolou a família. Ou tentou. A filha do paciente o encarou com olhos de fúria. Gritou. Chorou. Disse que ele não tinha feito tudo. Que tinha demorado. Que era culpa dele.
Dias depois, o hospital abriu uma sindicância.
Não porque houve erro médico, mas porque houve morte com barulho.
A família foi à imprensa. Um repórter com tempo livre escreveu:
“Paciente morre no plantão de médico inexperiente."
A direção, com medo de dano à imagem, exigiu uma "apuração rigorosa". Pegaram o prontuário. Havia um nome. Um único nome.
Dr. Rafael.
Chamaram-no para prestar esclarecimentos. Ele compareceu. Explicou. Mostrou o tempo do atendimento. Apontou os atrasos anteriores, as falhas de estrutura, a ausência do colega.
Mas a sindicância não quer histórias. Quer fechos. Quer um nome para sublinhar no ofício.
Rafael foi advertido. Formalmente. Por não ter registrado a insistência por apoio da equipe anestésica. Por não ter escrito que o monitor estava quebrado. Por não ter se protegido contra a memória seletiva do sistema.
Não foi demitido. Mas também não foi defendido.
Saiu em silêncio, com uma folha no bolso e um buraco na esperança.
Hoje, trabalha em um hospital menor. Sem UTI, sem trauma, sem manchetes. Continua atendendo. Continua escutando. Mas agora anota tudo. Cada passo, cada telefonema, cada negativa. Vive menos pela medicina, mais pela precaução.
E quando algum residente o chama para um caso grave, ele vai. Mas antes de entrar, pergunta:
— Você preencheu tudo? Assinou? Carimbou?
Porque aprendeu, do pior jeito, que na máquina de moer inocentes, o erro não é falhar.
É estar lá quando ninguém mais quis estar.
FIM.
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