O DNA que Não Explica Tudo





(Ou: quando a ciência hesita, mas a sociedade quer certezas)

Na sala fria do Instituto Médico Legal, com cheiro de álcool e silêncios coagidos, o Dr. Olavo assinava mais um dia. Não era um novato. Vinte e dois anos de carreira, centenas de corpos, dezenas de tribunais, e uma reputação forjada na cautela. Nunca dera um parecer com mais certeza do que a ciência permitia. E, por isso mesmo, era respeitado e temido.

Naquela terça cinzenta, chamaram-no para uma perícia especial. Criança de cinco anos. Suspeita de abuso.

No prontuário, lacunas. Na voz do delegado, urgência. Na mãe, desespero.

O menino, magro, assustado, com olhos que evitavam o teto. Disse pouco. Chorou em três momentos. O exame físico apontou equimoses em regiões mistas. Havia possibilidade de traumas. Mas não havia certeza.

Dr. Olavo descreveu com precaução:

"Lesões compatíveis com hipótese de abuso, sem características conclusivas de ato violento ou dolo evidente. Sugere-se acompanhamento psicossocial e investigação ampliada."

E assinou. Com a cautela de sempre. Com a honestidade do médico. Com a consciência de quem sabe: nenhum laudo deve ser uma sentença.

Três dias depois, veio a manchete:

**"Pai é preso por abuso após laudo de perito."
**
E embaixo:

"Especialista confirma lesões em criança de 5 anos."

Dr. Olavo arregalou os olhos.

Não fora isso que escrevera. Seu laudo fora técnico. Criterioso. Inconclusivo.

Mas a conclusão já estava escrita antes dele.

No inquérito, o parecer fora usado como prova-chave. A interpretação transformada em afirmação. O cuidado, em acusação. A análise, em julgamento.

E o pai?

Preso preventivamente. Sem defesa. Sem chance. A opinião pública já havia selado o veredito. O "perito confirmou". E isso bastava.

Uma semana depois, uma reviravolta. Escutas revelaram que a mãe manipulou situações. Forjou lesões com objetos domésticos. Induziu falas da criança. Tudo por vingança conjugal.

O pai foi libertado. O processo refeito. A história, recontada.

Mas Dr. Olavo já estava no centro da tempestade.

Chamaram-no de negligente. De “médico parcial”. Uma comentarista de TV perguntou se ele “protegia homens abusadores”. Um blog o chamou de "cúplice em jaleco".

Ninguém lera o laudo.

Ninguém quis saber da ambiguidade dos hematomas. Das possibilidades clínicas. Das limitações da perícia.

Todos queriam o que a ciência não podia dar: certeza moral.

Dr. Olavo pediu afastamento. Escreveu uma nota à imprensa. Não adiantou.

Na medicina legal, aprendeu-se desde cedo: mais perigoso do que o erro, é a verdade desconfortável.

Hoje, ele vive mais recluso. Escreve artigos sobre limites periciais. Fala em congressos sobre o papel da dúvida na ciência. Mas fora dali, é visto como o homem do laudo que não salvou um pai.

Nunca mais aceitou perícias com crianças.

Não por falta de coragem. Mas porque entendeu que, no tribunal da opinião, até a cautela pode ser condenada.

E no fim, compreendeu: o DNA revela ligações, não intencionalidades. E quando o mundo exige certezas, quem vive da busca pela verdade aprende a ser o primeiro suspeito.

FIM.


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