O Silêncio do Doutor Nunes
(ou: como salvar uma vida e enterrar a própria com a mesma assinatura)
Não há crime mais imperdoável do que o de cumprir o dever na hora errada. E se esse crime for cometido com caneta preta, carimbo oficial e laudo assinado, então é melhor preparar o crânio para o cadafalso da opinião pública.
Era uma segunda-feira comum no Hospital da Célula Justa. Nome pomposo, paredes sujas, corredores de espera onde os gritos se misturavam à burocracia. O Doutor Nunes, psiquiatra de plantão, homem de modos brandos e olhos de quem já viu demais, tomava o segundo café do dia quando lhe entregaram o caso.
— Paciente agitado, agressivo com a mãe, histórico de surto. Quer bater em todo mundo, inclusive em si mesmo.
Foi com essas palavras que lhe entregaram o prontuário. E foi com esses gestos que ele, em silêncio, colocou os óculos no rosto e dirigiu-se ao leito 17. Lá estava o rapaz, com a féria de quem já havia destruído duas cadeiras e jurado arrancar os próprios olhos — não por vaidade, mas por delírio.
Conversou com ele. Ouviu a mãe. Chamou o serviço social. Uma psicóloga. Um técnico. Preencheram três folhas, rubricaram sete vêzes, atestaram a periculosidade iminente e recomendaram a internação involuntária. Nunes, com a convicção triste de quem nunca quis ser carcereiro, assinou.
A internação salvou uma vida. Talvez duas. Talvez mais.
Mas três dias depois, o mundo externo bateu à porta com microfone e intenção.
— Abuso psiquiátrico em hospital público! Paciente internado contra a própria vontade! Onde está o direito de ser diferente?
A mãe, pressionada por vizinhos e blogueiros de direitos humanos, começou a hesitar. O rapaz, medicado e calmo, virou mascote da resistência. A imprensa não pediu acesso ao prontuário. Pediu imagens.
Dr. Nunes, então, virou manchete. O "médico do manicômio moderno". Um inquisidor de jaleco. O homem que calava os diferentes com seringa.
Ele não deu entrevistas. Não subiu em tribuna. Não rebateu. Continuou indo ao hospital, agora por corredores mais vazios. Recebia poucos cumprimentos. Muitos olhares. Algumas petições.
Foi aberto um processo. Não pelo erro, mas pelo ruído.
Na audiência, quando lhe perguntaram se não se sentia culpado, ele apenas disse:
— Prefiro que me julguem por trancar a porta do que por ter deixado a casa queimar.
Foi absolvido. Tardiamente. Sem notícia.
O paciente, meses depois, voltou ao mesmo hospital. Outro surto. Outro plantonista. Mas dessa vez, ninguém quis assinar.
Doutor Nunes já havia se aposentado.
Nunca processou ninguém. Nunca respondeu as acusações.
Nunca mais falou sobre o caso.
Apenas sorriu, um dia, ao ver um cartaz na parede do hospital:
“Aqui, cuidamos da sua vida. Mesmo quando você ainda não sabe como cuidá-la.”
E foi embora. Sem capa. Sem manchete. Sem barulho.
FIM.
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