Crônica de um Polegar Ferido (e um Céu Estrelado no Fim)
Amanheceu antes do sol.
Ainda escuro, o dia já esperava por ele — ou talvez fosse ele que esperasse, já de pé, com o jaleco no cabide da alma e a pressa vestida na alma inteira. Cirurgião de carne, osso e missão, saiu antes que o relógio dissesse "vá", porque já sabia que o tempo não esperaria.
Duas cirurgias. Dois hospitais. Uma só hora. Sete e oito.
Era como dizer sim e não ao mesmo tempo. Mas há dias em que o corpo se transforma em metáfora de si mesmo e dobra esquinas do impossível com um bisturi no bolso.
Chegou ao primeiro hospital quinze minutos antes, como quem antecipa o próprio destino. A cirurgia era de vesícula — órgão pequeno, mas que guarda as sombras do amargor e os silêncios do abdômen. A paciente era difícil. A médica responsável, ainda mais. Mas ele estava lá, inteiro.
Quando os ponteiros do relógio mordiam cinco para as oito, ele correu. Não metaforicamente — correu mesmo.
Desceu as rampas com a pressa de quem sabe que o tempo é uma doença degenerativa.
Seu carro, fiel escudeiro, já o esperava. Motor ligado no estacionamento, a ansiedade no porta-luvas.
Mas o universo, sempre artista, resolveu pintar a cena com ironia.
Na estrada, um carro de autoescola serpenteava lentamente como se ensinasse as nuvens a dirigir. Ele atrás, impotente.
A paisagem passava devagar. O relógio, rápido.
E o suor que descia da testa parecia rir da situação.
Chegando ao segundo hospital, nova tecnologia: acesso apenas com código. O subsolo agora tinha uma porta que não se abria para qualquer um. Era preciso ser seleto.
Ele não era. Não ainda.
Mas eis que um ortopedista, vindo de dentro, abriu a porta sem querer querer — e ele, sem querer pedir, entrou.
Subiu como se fosse dele o lugar. O peito inflado, o orgulho fingido.
No vestiário, pediu roupa grande.
Recebeu uma que mal lhe cobria as coxas. Engessado na vergonha, pediu outra.
A moça, sem olhar para ele, disse:
— Toma. Já leva uma extra G. Vai que...
A fala não precisava de ponto final.
Saiu dali com o ego dobrado no bolso, como se a balança da vida tivesse rido de seus esforços. Mas cirurgião que se preza não sangra por fora.
Correu pelo longo corredor do centro cirúrgico. Cem metros.
Cem metros entre o fracasso e o dever.
Na curva, tropeço.
O polegar esquerdo encontrou o chão com a força de um amor rejeitado.
Mas ele levantou. Sacudiu.
O polegar latejava, mas apertava a pinça laparoscópica como quem diz: "ainda estou aqui".
E estava.
Ajudou o colega. Conduziu a cirurgia.
E, no fim, a mesa de operação foi apenas mais um palco onde o corpo, mesmo ferido, dançava o balé da vocação.
Ao anoitecer, enfim, o silêncio.
Ao lado da esposa, mergulhou em girassóis, noites estreladas e autorretratos de um homem que também conhecia a dor e a beleza.
Van Gogh o acolheu como se dissesse:
— Eu também sangrei. Mas pintei.
E ele sorriu.
Porque naquele dia, embora ferido, também pintara — com bisturi, suor, tropeços e amor — mais uma tela invisível chamada vida.
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