Último Café Frio

 



O relógio marcava 05h48. O plantão terminava às 07h00, mas ele já sabia que não ia embora no horário. Nunca ia.

O café estava frio na caneca de plástico, encardida como a alma dele. Tinha esquecido o gosto do café quente. Tinha esquecido muita coisa. O nome da primeira paciente do turno, por exemplo. A mulher do leito 3. Era doente renal, diabética, amputada. Tinha chamado por ele quatro vezes com aquela voz rouca de desespero. Ele respondeu em silêncio. Queria responder com palavras. Não deu.

A luz fluorescente do pronto-socorro fazia o tempo escorrer lento. Um menino chegou com febre de 40 graus nos braços da mãe. A avó com dispneia. Um baleado. Um drogado delirando. Um homem em surto quebrando a porta do consultório. Um idoso sem ninguém, com o coração falhando como rádio velho.

O jaleco já não era branco. Ele também não.

No meio da madrugada, viu a própria sombra no vidro da sala de medicação. Um vulto curvado, olheiras cinza, boca trincada de sede. Se fosse paciente, se medicaria com morfina e deixaria dormir por trinta horas. Mas não era. Era médico.

“Doutor, o do leito 6 parou!”

Correu. Reanimação. Tensão. Adrenalina. Máscara. Choque. Suor. Silêncio. Morte.

Fechou os olhos por dois segundos. Em algum lugar da memória, uma voz antiga, voz da avó, voz de igreja, sussurrou:
“Não sabes, não ouviste que o Eterno, o Senhor, o Criador dos fins da terra, não se cansa nem se fatiga?”

Respirou fundo. Tossiu.
“Dá vigor ao cansado…”

Sim, estava escrito.
Sim, ele estava exausto.
Mas ainda respirava.

Levou a mão ao bolso. Pegou um chocolate amassado. Comeu como se fosse maná. Voltou ao corredor. Um jovem com dor abdominal gritava. Uma mulher grávida chorava. Um paciente chamava por socorro. A luta não tinha fim. Mas também não tinha pausa.

“…os que esperam no Senhor renovarão as forças…”

Levantou os ombros. Não como herói. Como quem não tem escolha, mas ainda tem fé.
Subiu as escadas do hospital. Caminhou até o box da sala vermelha.

E ali, entre um corpo morrendo e outro lutando, ele continuou.
Sem asas, sem glória, mas com o que restava de força.

E foi suficiente.

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