Os que Dormem de Olhos Abertos

 



Na cidade de Parazul, onde as noites são tão densas que podiam ser colhidas com colher de pau, vivia Alcides, um homem de sono raso e memórias profundas. Parazul não estava em nenhum mapa confiável, mas os ventos alísios sabiam onde ela ficava. E era o suficiente. Era uma vila onde as mangas amadureciam só de serem olhadas e os peixes saltavam direto nas redes dos mais distraídos. Ninguém ali usava relógio, pois o tempo se media pelos ciclos das chuvas e pelos sonhos que a cidade costurava em suas madrugadas lentas.

Mas Alcides não sonhava mais.

Desde a noite em que tomara um comprimido redondo como uma moeda de prata — dexametazona, receitado por um farmacêutico que se dizia médium —, o sono fugira dele como gato assombrado. Três noites de olhos tão abertos que viam o escuro com mais clareza que o dia. Três noites escutando os ruídos do mundo como se fossem confidências: o ronco da esposa, o zumbido de mosquitos que carregavam saudades de outras encarnações, o gelo tilintando como sinos tibetanos na barriga da geladeira. E, acima de tudo, o próprio coração, batendo um compasso antigo que não obedecia mais ao tempo.

Foi nessa insônia que Alcides compreendeu os que se jogam nos braços de Tânatos com a doçura de quem adormece no colo da avó. Não por covardia, mas por exaustão. "Dormir o tempo que quiser", pensava ele, "não seria isso a forma mais generosa de eternidade?"

Na casa de teto baixo e paredes de adobe que cheiravam a infância molhada, ele tentava todas as magias possíveis: banhos de folhas, travesseiro com essência de flor-do-mar, música de baleia tocada em rádio de pilha. Chegou a comprar melatonina da mão de um vendedor que dizia ter sonhado com um boi que falava. E ainda assim, nada. O sono era um pássaro desconfiado, pousando nas janelas de outros, nunca nas suas.

— Talvez eu esteja vivendo um castigo mitológico — sussurrava para si mesmo, entre goles de chá de camomila fermentado com CBD. — Um desses heróis trágicos condenados a desejar o que não podem tocar.

A cidade, que ouvia os sussurros de Alcides, começou a sonhar por ele. Na vila, crianças passaram a ter sonhos longos com um homem que flutuava sobre as mangueiras, sem nunca pisar no chão. As velhas sonhavam com um jovem que costurava estrelas no céu, uma por uma, até adormecer de cansaço. O padre sonhou que batizava um peixe com o nome de Alcides e o bicho respondia com uma bênção em latim.

Mas Alcides seguia acordado.

Na quarta noite, com as pálpebras ardendo de tanto mundo visto, decidiu caminhar. A madrugada de Parazul era um ser vivo, uma entidade quente e úmida que se enroscava nos pés como gato carente. Ele caminhou até o cais, onde os barcos dormiam melhor que ele, e sentou-se no trapiche, deixando que a maresia contasse histórias de marinheiros invisíveis.

Foi ali que conheceu Dona Velina, a única moradora da cidade que dizia não precisar dormir.

— Eu durmo nos sonhos dos outros — disse ela, com a simplicidade de quem oferece uma manga madura. — E é por isso que nunca me canso.

Alcides, com os olhos fatigados como duas luas velhas, sorriu. A mulher lhe deu uma rede trançada com fios de cabelo de defunto e penas de urubu-rei. Disse para que pendurasse no pé da cama e deixasse uma vela acesa — mas não qualquer vela: tinha de ser feita com cera das abelhas que viviam em colmeias de pedras.

Ele obedeceu. E naquela noite, pela primeira vez em meses, dormiu.

Mas não acordou.

Desde então, dizem que Parazul sonha mais. Que os dias ficaram mais lentos e doces, como se mastigassem jabuticabas com cuidado. Que as pessoas têm lembranças de coisas que nunca viveram, como uma infância compartilhada com um homem que sabia escutar o silêncio.

Dizem que Alcides dorme até hoje, em algum lugar entre os ventos, sonhando por todos os que esqueceram como é se entregar à noite sem medo.

E, vez ou outra, uma criança acorda dizendo que flutuou com ele sobre as mangueiras.

O sonho e a cidade

Parazul nunca mais foi a mesma depois do sono de Alcides. A cidade passou a respirar de forma diferente, como se seus pulmões fossem as janelas das casas — abrindo e fechando em compassos de brisa salgada. Os pardais começaram a cantar em compassos de nona sinfonia e o sino da capela tocava sozinho, sem ninguém puxar a corda, sempre às quatro da manhã. Era a hora em que Alcides costumava desistir da noite.

As pessoas começaram a notar pequenas mudanças

As velhas com nomes de frutas — Dona Cidra, Dona Jamelão, Dona Grumixama — voltaram a dormir sem os comprimidos coloridos guardados em caixas de sapato. Crianças deixaram de ter pesadelos e, no entanto, acordavam com os olhos cheios de lágrimas doces, como quem voltava de um lugar mais bonito que o mundo. Quando perguntadas, diziam apenas: “Estávamos com ele… nas árvores… voando devagarinho”.

O nome Alcides começou a se espalhar feito cheiro de pão fresco na madrugada. Era dito nas rezas, nas bênçãos e até nas brigas de casal. "Por Alcides, mulher, me deixa dormir!", gritava um pescador ao ser acordado para ir atrás de um peixe que, segundo a esposa, havia prometido voltar em sonho. E voltou: três dias depois, o peixe foi encontrado na rede, com escamas que brilhavam como pétalas molhadas.

Na escola, os professores ensinavam o “Caso Alcides” como se fosse matéria de História Natural. Falavam dele como se fosse um fenômeno atmosférico, uma estação que durou o tempo exato entre uma insônia e um suspiro. Os alunos desenhavam mapas dos sonhos, tentavam lembrar onde estavam as árvores flutuantes, as casas com telhados de espuma, as escadas feitas de vento.

Ninguém ousava acordá-lo. Nem mesmo sua esposa, Laura, que por anos adormeceu com a sinfonia inquieta de seus passos e agora o velava em silêncio, noite após noite, como quem vela um rio — aceitando que ele corre, mas sem saber quando volta. Ela lhe penteava os cabelos, contava histórias do que acontecia lá fora, lia em voz alta cartas escritas por vizinhos, turistas e até por gente da capital que pedia conselhos para dormir melhor.

“Senhor Alcides, ouvi dizer que o senhor virou guardador de sonhos. Será que podia guardar os meus também?”

A cama de Alcides virou altar. Colocaram flores frescas, folhas de pitangueira, pequenas esculturas de madeira feitas por Seu Dionísio, o escultor cego que dizia enxergar perfeitamente enquanto dormia. Dona Velina — a mesma que lhe deu a rede mágica — passava todos os domingos, deixava um punhado de sal grosso e dizia em voz baixa:

— Quando ele acordar, vai estar em outro tempo. Não neste. Vai sonhar o mundo novo antes que ele exista.


A cidade também começou a dormir mais. O comércio fechava ao pôr do sol, as reuniões da prefeitura passaram a ser realizadas em redes armadas entre as colunas da praça, e as missas, celebradas em sussurros, para não incomodar quem estivesse entre dois sonhos.

O tempo, que já era lento, virou líquido.

As horas escorriam pelas calçadas, escorregavam nas telhas, dormiam dentro das frutas. As goiabas amadureciam antes de serem colhidas, e os cajus — que antes resistiam ao chão — agora se jogavam com alegria, como quem se entrega ao fim de um espetáculo. Até o calor mudou: já não era incômodo, era um abraço úmido, uma lembrança do ventre da mãe.


Foi então que começaram a aparecer as borboletas.

Primeiro, uma. Azul escuro, do tamanho de uma mão. Depois, aos pares, aos trios, aos montes. Entravam nas casas, pousavam nas camas, e ficavam imóveis por minutos, como se escutassem. Dizem que quem escutava com elas podia ouvir as memórias de Alcides — lembranças que ele espalhava pelos ventos de Parazul enquanto dormia.

— A infância dele tinha cheiro de pão com banana amassada — disse um menino que nunca tinha provado banana na vida.

— Ele sonha com a avó vestida de lençol, dizendo que tudo o que é doce começa com medo — confidenciou uma adolescente durante uma roda de histórias.

As borboletas eram suas mensageiras. Seus sonhos não moravam mais só na sua cabeça, mas na cidade inteira. Parazul, enfim, dormia com ele.


Certa madrugada, a rede feita com fios de defunto e penas de urubu-rei começou a se desfazer sozinha. Laura, que velava a noite como sempre, viu o último fio partir exatamente às quatro e dez da manhã — a mesma hora em que, anos antes, Alcides havia escrito suas últimas palavras acordado.

Mas ele não acordou.

Em vez disso, a vela feita com cera de abelhas-pedra acendeu sozinha. Uma luz branda, cálida, como brisa morna de forno de barro. E então, pela primeira vez em muito tempo, Laura adormeceu ao lado dele. Mas dessa vez, ela sonhou.

E no sonho, viu Alcides flutuando sobre a cidade, não como um espírito, mas como um jardineiro do sono. Ele passava de casa em casa, regando as pessoas com um regador dourado. Dele saíam lembranças, músicas esquecidas, abraços que ainda doíam de tão ternos. Ao passar sobre o mar, as ondas se acalmavam, como se também dormissem.


Dizem que Laura dormiu por sete dias. Ao acordar, seus cabelos estavam cheios de florzinhas brancas que ninguém soube nomear. Ela disse apenas:

— Ele está bem. Sonhando com o mundo antes que ele aconteça.

E foi nessa mesma semana que nasceu uma criança com os olhos de Alcides. Olhos de quem já viu o tempo de outro jeito. Chamaram-no de Alcides também — o terceiro da família com esse nome. Era tradição por ali repetir os nomes, como se fossem sementes lançadas no mesmo solo.

O novo Alcides não chorou ao nascer. Sorriu. Um sorriso pequeno, mas pleno. Como se dissesse: “Estou de volta.”

E a cidade, Parazul, sorriu com ele.

Quando Parazul se Torna Lenda

Com o tempo, ninguém mais soube dizer onde começava o sonho de Alcides e onde terminava a cidade. Parazul foi, pouco a pouco, sendo engolida pelo silêncio bom das coisas que não precisam ser ditas. Os mapas a apagaram, mas os ventos ainda sabiam o caminho.

Na casa de adobe, agora coberta por trepadeiras de flor vermelha, Laura continuou vivendo, mas já não velava a noite. Dormia cedo, com um sorriso de espera. Dizia que Alcides ainda vinha vê-la — não em sonho, mas nas entrelinhas das manhãs, no aroma do café passado, no som do sino que tocava sozinho às quatro e dez.

— Ele está aqui — dizia às visitas. — Só que de outro jeito.

E ninguém duvidava.

As pessoas, com o passar dos anos, começaram a peregrinar até Parazul em busca de sono. Vinham de longe, com os olhos fundos e os corações barulhentos. Queriam repousar. Os antigos moradores acolhiam todos, oferecendo redes e sucos de fruta com nomes impronunciáveis. E contavam a história de Alcides como quem oferece bênção.

Diziam que quem dormisse três noites seguidas ali renascia por dentro. Diziam que a maresia curava tristeza antiga e que, se alguém deitasse sob a goiabeira da praça, poderia sonhar com sua versão criança — a que nunca deixou de existir, só havia se escondido nas dobras do tempo.

Com o tempo — porque tudo é tempo em Parazul — os mais céticos também cederam. Houve um homem de negócios que chegou bufando contra "essas bobagens místicas", mas foi encontrado dois dias depois rindo sozinho, sentado na calçada, desenhando borboletas na poeira. Nunca mais voltou à cidade grande.

O novo Alcides cresceu com olhos de quem lembra do que ainda não aconteceu. Falava pouco, mas quando falava, as palavras pareciam vir de antes do mundo. Um dia, aos oito anos, olhou para a avó Laura e disse com doçura:

— Quando eu crescer, vou ensinar o céu a dormir também.

E ela apenas assentiu, com os olhos marejados.


Hoje, ninguém sabe ao certo se Parazul ainda existe.

Alguns dizem que sim, mas que ela aparece apenas aos que já estão prontos para descansar. Outros juram que ela submergiu nas marés do tempo, como uma cidade-lembrança, feita de brisa, frutas e silêncio. Há quem diga que ela virou sonho de todos, como Alcides queria. Um sonho compartilhado, eterno, calmo.

Seja como for, em alguma parte do mundo, sempre que alguém fecha os olhos com o coração em tumulto e, ainda assim, encontra descanso — é possível que, por um breve instante, esteja passando por Parazul.

E se escutar ao longe um sino tocando às quatro e dez, pode ter certeza: Alcides ainda cuida do sono do mundo.


Fim.

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